Nova função, cobrança multidisciplinar e poucas ferramentas preocupam o professor, narrador desta história
Grande parte da cidade ainda dorme, quando deixo o portão de casa com passos apressados e escorrego o corpo ainda sonolento até a parada de ônibus. Meus dias, em geral, são longos: três turnos de trabalho em escolas que ficam em pontas diferentes da cidade. Foi assim, na correria de uma aula pra outra dentro do transporte coletivo, que me acostumei a cortar Fortaleza mais de uma vez no mesmo dia.
A sensação é de que estou 24 horas a mil. Como vou conseguir conciliar a tarefa de transmitir o conteúdo a uma outra demanda que agora, dentre tantos tipos de violência na escola, vêm surgindo silenciosa pra recair sobre meus ombros? Como eu, professora de dezenas de alunos por turma, vou dar conta de assumir também um papel que deveria ser dos pais? Que critérios devo escolher para educá-los para a vida?
Das palestras com especialistas e pesquisas que li sobre o assunto, tenho como dever incorporar também o papel de ser mãe de meus alunos. Como se a exigência da minha entrega já não fosse tanta, escuto com frequência a própria família me cobrar resultados. Outro dia, chamei a avó de um aluno cuja indisciplina já prejudicava toda a sala. Mal expus o problema, ela foi dizendo: "Não sei o que fazer com esse menino mais não. Se você quiser, que dê seu jeito". Mas como, se um simples pedido de silêncio na hora da aula já é motivo para acionar um gatilho de ameaças?
Não bastassem as horas exaustivas de trabalho, preciso ajudar os meus alunos a aprenderem a solucionar seus próprios conflitos sem nem sequer ser apresentada às possíveis ferramentas. O negócio é experimentar. E assim vamos dando vários tiros no escuro na esperança de acertar um.
Um colega, por exemplo, decidiu criar um jogo, distribuindo cartões verdes por atitude positiva e vermelhos quando se quebra as regras ou precisa se ausentar da sala durante a aula. Cada aluno tem direito a três vermelhos para as necessidades. Se perder o quarto, corre o risco de ser suspenso. Um deles cochichou baixinho para o professor que precisava ir ao banheiro, mas já havia perdido todos os seus cartões. Nesse momento, meu colega descobriu: é preciso quebrar as regras quando não são boas.
O problema é que, na dificuldade de manter autoridade e respeito perante o aluno, acabamos gastando mais tempo com convenções do que com as questões verdadeiramente morais.
Uma professora do Fundamental II me contou que reclamou com uma aluna porque ela estava usando caneta vermelha na tarefa, mesmo depois de ela ter dito que só poderia usar a azul. A menina insistiu uma, duas, três vezes. Ela tomou a caneta e mandou chamar a mãe. Na conversa, a mãe questionou: "Mas por que proibir a caneta vermelha?" Minha colega respondeu: "Eu já não tenho mais autoridade aqui por causa desse tipo de aceitação".
Fiquei pensando em que tipos de conflitos vale a pena gastarmos tempo. Na escola em que outro colega trabalha, os meninos do Ensino Fundamental estavam tendo seus lanches tomados pelos alunos do Ensino Médio. A solução encontrada na escola foi deixar os menores lanchando dentro da sala de aula para garantir-lhes o direito de comer. Na hora, achei uma ideia eficaz. Mas agora, pensando melhor, creio que foi apenas o caminho mais rápido.
Vale a pena, constatei na correria do meu dia, me preocupar com conflitos que envolvem intolerância. Preciso encontrar formas de fazer meu aluno reconhecer os valores morais. Só assim eles vão conseguir resolver conflitos maiores: quando passarem a solucionar os problemas menores do seu cotidiano.
A grande questão sou eu, praticamente só, ter que dar conta disso tudo. Alguns projetos sociais nos auxiliam na escola, mas os vejo pontuais demais para melhores resultados. Às vezes, acho que o que falta mesmo é um grande grito por socorro contra as violências desproporcionais que vemos diariamente. Que se exija menos que o professor seja também pai e psicólogo e que lhes dê ferramentas e estrutura para seguir a vocação de educar.
Vocação e amor para ensinar
A professora de cabelos vermelhos desce os batentes do pátio chamando atenção. "Professora Magna", chama um menino que assistia a um jogo de futebol na quadra. "Agora não dá, amor. Tenho que ir ali conversar com esse pessoal do jornal", ela diz, sorrindo. Depois sai apressada - o perfume ficando um pouco mais no corredor - para pegar a chave do laboratório de ciências. "É que os meninos estão disputando campeonato de futebol. Tá todo mundo animado", explica Magna Lup Crispim, enquanto acomoda os óculos escuros sobre a cabeça.
Recentemente, presenteou os alunos com a bola que agora rola pela quadra de piso vermelho. "Você não sabe como uma bola prende os alunos na escola! O negócio é que só dura dois meses, aí os professores tão sempre comprando outra". A revolução que a simples bola faz no cotidiano desses meninos é a mesma que toma a professora.
Entre os alunos, o que se comenta é que ela é uma das mais respeitadas. Divide a fama de durona com a de amiga. Não é raro receber a ligação de algum deles querendo uma conversa ou um conselho. "Eu acho que eles me respeitam porque sou muito envolvida com eles. Sou tão eles, sabe? Dentro de mim, tem uma revolução", diz.
A sobrecarga de trabalho nos três turnos e as violências que já viu dentro e fora das várias escolas em que trabalhou instigam a missão que abraçou para si: tentar melhorar o mundo para o seu aluno imerso em vulnerabilidade. Sem negar a culpa do sistema, ela sabe, tem coisa que também depende dela.
"É difícil, quando tem um aluno que tá roubando e tá matando, você sentir que muitas vezes o professor não está mais vendo aquele menino como aluno. Está vendo como qualquer um vê lá fora, entendeu? Como marginal. Meu aluno que está roubando, pra mim, não é um ladrão qualquer. É meu aluno errado. Não aprendi a separar, me desespero quando perco um", ela diz.
Na carreira de professora, precisou aprender a lidar com as perdas enquanto se empenhava no árduo trabalho de salvá-los pelo conhecimento. Uma pergunta lhe martela a cabeça todos os dias: O que fazer para ajudá-los? Enquanto busca respostas, perde mais um e se devasta. Não é raro ouvir de alguém: "Como é que você pode chorar por uma pessoa que tá matando?". A estranheza, porém, é dela. "Eu penso é no porquê de ele estar naquela situação e na minha falta de forças para ajudá-lo", responde.
Violência maior pra ela, que divide a vida e as histórias de suas tatuagens com meninos de diversas turmas, é toda a estrutura negada ao aluno: em casa e na escola. Violência é mal ter como se salvar.
Bastidores
Visão do docente para refletir suas posturas
O professor vira narrador deste capítulo para contar estratégias e preocupações expostas por dez docentes ouvidos durante a apuração da reportagem. A escolha do arquétipo como protagonista é uma forma de preservar-lhes a identidade, evitando problemas com alunos e direção das escolas em que trabalham, sem deixar de contar o real cotidiano deles.
Beatriz Jucá
Repórter
Repórter
Fonte: Diário do Nordeste
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