Há pouco menos de um século, um surto da chamada gripe espanhola, causada pelo vírus H1N1, matou pelo menos 40 milhões de pessoas em todo o mundo. Há pouco mais de um ano, um novo surto da Influenza A – subtipo de vírus da gripe ao qual as gripes espanhola e suína pertencem – matou cerca de 25 mil pessoas. Embora os quase 100 anos que separam as duas epidemias tenham impactado diretamente o número de vítimas da doença, os mais duros tipos de gripe continuam sendo ameaçadoramente letais, e uma resposta amplamente eficaz contra a doença nunca foi desenvolvida, por mais que milhares de cientistas ao redor do mundo se debrucem diariamente sobre o tema.
Um artigo publicado na edição on-line da revista científica Science mostrou, contudo, que pela primeira vez uma vacina que atinja todos os tipos de Influenza A e um medicamento eficiente contra todas as variantes do vírus finalmente podem se tornar realidade. Cientistas do Reino Unido e da Suíça anunciaram a descoberta do FI6, um anticorpo naturalmente produzido pelos seres humanos e altamente eficaz no controle de todos os tipos de gripe A.
O valioso anticorpo foi encontrado depois de os cientistas testarem mais de 100 mil células de defesa de pessoas que já tiveram – ou se imunizaram contra – gripe. “Procuramos por um anticorpo que seria capaz de bloquear todos os vírus da gripe, produzido por células do sistema imunológico dos indivíduos vacinados. É emocionante que, apesar de raro, tenhamos encontrado um”, explicou ao Estado de Minas sir John Sekehel, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisa Médica do Reino Unido.
Tempo
Segundo seus descobridores, o FI6 tem potencial duplo. Pode resultar tanto em um medicamento único, que trate todos os tipo de gripe, quanto em uma futura vacina, que previna os três subtipos de Influenza. “Um remédio está mais próximo. Precisamos fazer ensaios clínicos necessários para outras moléculas antivirais”, conta Sekehel. “Devem ser os próximos passos de nossa pesquisa”, diz o especialista britânico, que, por suas contribuições para a virologia mundial, recebeu o título de “sir”, da rainha da Inglaterra, Elisabeth II.
Uma possível vacina, entretanto, deve demorar. “As estruturas do complexo anticorpo que relatamos formarão os passos iniciais na tentativa de desenvolver uma vacina, que será baseada na estrutura específica do vírus que interage com o anticorpo”, relata o especialista do Instituto Nacional de Pesquisa Médica do Reino Unido. “Suspeitamos que a vacina vai demorar pelo menos cinco ou 10 anos para se desenvolver.”
Descobrir uma forma eficaz de combate à doença tem sido um desafio para a ciência há pelo menos um século. Segundo o virologista da Universidade de Brasília (UnB) Fausto Stauffer Junqueira, o grande obstáculo para uma resposta mais efetiva contra os diversos tipos de Influenza está no caráter mutante do vírus. “As proteínas que compõem a estrutura do vírus têm uma capacidade imensa de sofrer mutações”, conta. Segundo ele, a resposta imune do organismo parece uma corrida de gato e rato. “À medida que o organismo cria anticorpos capazes de atacar determinados tipos de vírus, eles (os vírus) sofrem uma mutação, deixando aquele anticorpo ineficaz”, explica.
Por essa razão, o especialista é bastante cético em relação ao desenvolvimento de uma resposta universal à gripe. “A hemaglutinina, que é a proteína atacada por esse anticorpo, está numa área que sofre grande mutação. Por essa razão, a cada ano temos que desenvolver uma vacina diferente e específica para a gripe”, conta o pesquisador. “Provavelmente, uma resposta que agisse em uma área mais interna do vírus talvez fosse mais eficiente no combate à Influenza A. Menos mutante, essa área é, por isso, mais promissora”, acrescenta Junqueira.
O pesquisador do Instituto de Biologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Daver Fernandes Ferreira explica que o caráter altamente mutante da estrutura externa do vírus se deve à própria resposta imune que o organismo dá a esses micro-organismos. “Quando um corpo estranho invade o organismo, é na parte externa que ocorre o primeiro contato. É nela que o sistema de defesa se baseia para produzir anticorpos”, conta Ferreira.
Entretanto, da mesma forma que a parede viral é tão difícil de atingir, quando um medicamento consegue danificá-la o resultado é altamente prejudicial à doença. “A hemaglutinina tem um papel fundamental na incorporação do vírus à célula”, explica o pesquisador da UFRJ. “Assim, se você consegue atingir essa estrutura, barra-se a contaminação de mais células”, completa. Sem capacidade de viver e se reproduzir fora do núcleo celular, os vírus acabam derrotados.
Apesar de ser mais frequente em aves e mamíferos de pequeno porte, como os suínos, a Influenza A é altamente mortífera ao homem exatamente por não ser “conhecida” do organismo humano. Quando ocorre uma mutação em um gene, por mais que ele não consiga combater totalmente o vírus, ele consegue enfraquecê-lo, dependendo do nível de mutação que sofreu. “No entanto, quando ocorre uma grande mutação, ao ponto de o vírus que vive em uma ave conseguir se estabelecer em um humano, as consequências são bem mais graves”, diz Daver Ferreira, acrescentando: “O corpo humano não tem memória imunológica alguma de vírus vindos de animais. Por isso, quando o vírus da gripe espanhola atingiu o ser humano, foi tão letal”.
“Essa gripe veio de uma variante do H1N1 que inicialmente infectava porcos. O mesmo vale para a gripe aviária, que veio de outra variante do H1N1, que infectava frangos”, completa Ferreira.
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