sábado, 19 de outubro de 2013

Artigo que trata das políticas públicas em Icapuí (1986/2004)

Capital social e redes sociais como alternativa para análise de políticas públicas de educação: o caso de Icapuí-CE*
 
O município
Icapuí é um pequeno município do litoral do Estado do Ceará que faz fronteira com o Estado do Rio Grande do Norte. A população, de cerca de 19.385 habitantes2, distribui-se entre a zona urbana (70%) e rural (30%) (LOTTA; MARTINS, 2003). A base econômica do município é o setor primário, tendo como principais produtos a lagosta, o sal marinho, as culturas de caju e de coco e, mais recentemente, o petróleo. A pesca é o setor de maior importância na economia do município e também o que emprega mais pessoas. Do total de 2877 famílias, 1382 estão vinculadas à pesca direta ou indiretamente (LOTTA; MARTINS, 2003).
Para efeitos de análise, agrupamos a história do município em três períodos históricos conforme o Quadro 1, baseando-se no trabalho de Lotta e Martins (2003).

 
 
Marco de análise: os três momentos históricos
a) Antecedentes (1930-1980)
Durante grande parte do século XX, Icapuí foi um distrito do município vizinho Aracati. No entanto, as diversas lutas pela emancipação do município foram ocorrendo ao longo das décadas. O processo começou em 1938, mas se tornou maior a partir de 1956, quando o distrito conseguiu organizar-se politicamente e obter a criação do município em 1959. A votação da lei que regulamentaria este ato fora, no entanto, atrasada por manobra das forças da oligarquia local contrária à independência do município, o que transferiu as eleições municipais para 1966. Entretanto, o golpe militar de 1964, ocorrido no meio desse período, atrasou por mais duas décadas o sonho da independência. Durante todo este período, no entanto, foi-se formando uma identidade entre os habitantes do então distrito de Icapuí voltados para a luta política pela emancipação.
Robert Putnam (1996), em seu estudo sobre o desenvolvimento político das regiões da Itália, estabeleceu uma relação direta entre o nível de engajamento cívico da comunidade e a qualidade de sua governança (COSTA, 2003, p. 155). A explicação de um desempenho econômico e institucional superior no Norte da Itália está atrelada nas instituições e organizações que datam de mil anos atrás, com a presença de associativismo (horizontal) e alto nível de participação cívica. Desta forma, o capital social está relacionado aos laços de confiança mútua, redes estabelecidas de cooperação, mecanismos comunitários de coerção e comportamento para a solução de problemas dependentes da ação coletiva.
Na tentativa de mensurarmos a qualidade de capital social presente na experiência relatada de Icapuí, adota-se neste artigo uma concepção de capital social geral que contém as seguintes características: (a) relações de participação, cooperação e confiança que são responsáveis pela criação e/ou fortalecimento do capital social; (b) o capital social não é o único responsável pelo desenvolvimento de uma comunidade, já que este também depende das várias combinações de outras condições; (c) a participação da comunidade é elemento fundamental do capital social que pressupõe formas democráticas de governo, sendo o Estado responsável por criar a cultura democrática e a transparência nos assuntos públicos (COSTA, 2003, p. 157).
No caso de Icapuí, não só o início das políticas públicas de caráter universalistas na área de educação, mas também as da área de saúde, estão diretamente relacionadas com o processo de emancipação. Adota-se, a partir deste ponto, o conceito de capital social formulado e proposto por Putnam (1996) por considerar-se que o caminho percorrido pelos diversos membros da comunidade demonstra elevados níveis de engajamento cívico (civismo), intensidade de vida comunitária e a construção de laços fortes de confiança mútua entre atores sociais importantes ao longo dos anos. Estes fatores foram essenciais para a constituição de redes sociais de sustentação de um projeto político que será analisado nas partes seguintes deste artigo.
A ideia da emancipação do município de Aracati e a consequente luta pela separação foi, sem dúvida, um dos elementos histórico-culturais que aglutinou as forças sociais presentes na comunidade de Icapuí.
 
b) A luta pela emancipação (1980-1985)
No início dos anos 1980, um grupo de jovens de Icapuí, provenientes da oligarquia local, e que tinham saído da região para estudar e realizar o ensino superior na capital do estado, Fortaleza, passou a encontrar-se regularmente durante o período de férias escolares. Retomando a questão da emancipação, o grupo decidiu tomar algumas ações para continuar a luta pela emancipação. Fundaram, então, uma associação de jovens e estreitaram o contato com a população local, tentando mobilizála para que reinvidicasse a emancipação.
Durante esse mesmo período, a Igreja Católica desenvolvia uma ação social na região, buscando organizar as comunidades e suprir o descaso da administração de Aracati que tinha a região de Icapuí apenas como um curral eleitoral (ALMEIDA, 1993; LOTTA; MARTINS, 2003). Assim, o trabalho da Igreja foi conseguindo mobilizar e capacitar lideranças comunitárias nas diversas comunidades locais. Formou-se, assim, um grupo coeso e determinado a lutar pela emancipação, composto pela associação de jovens, juntamente com antigas lideranças do movimento emancipatório dos anos 1950, organizações estudantis, Igreja Católica, líderes comunitários e políticos contrários a Aracati.
Em 1982, o líder do grupo de jovens conseguiu ser eleito vereador de Aracati, com a terceira maior votação, comprometido a levar a questão da emancipação à Câmara dos Vereadores de Aracati. O movimento emancipatório foi, pouco a pouco, crescendo nos anos seguintes e conquistando novas lideranças. Em 1984, Icapuí conseguiu realizar um plebiscito pela emancipação. O "sim" venceu o "não". A primeira eleição municipal foi marcada para o ano seguinte, coincidindo com as eleições gerais do Estado do Ceará.
Neste segundo momento histórico também podemos ver a presença do capital social formado e acumulado no período anterior. Este capital social, no entanto, diferentemente do anterior - que tinha um caráter histórico e culturalista - apresenta características de natureza institucionalistas.
Para esta análise, utiliza-se a perspectiva de capital social apresentada por Evans (1996a). Para a execução de políticas sociais, o autor ressalta a importância de um agente mobilizador, dotado de forte engajamento político e capaz de criar um círculo virtuoso. O que difere a perspectiva do autor desta análise em questão é que para Evans esse agente é o Estado. No caso de Icapuí, no entanto, a criação e mobilização do capital social, como pode-se ver no que foi apresentado não poderia ter sido realizada pelo Estado que, inclusive, era contrário ao projeto emancipatório. Assim, essa mobilização se deve a diversas instituições e atores da sociedade civil que se juntaram em torno de um projeto comum: a associação dos jovens, a Igreja Católica, os grupos comunitários e a rede de relações existentes então - que pode ser vista, da perspectiva neoinstitucionalista de rede, como uma instituição.
Neste segundo momento histórico também pode-se ver retomada a rede social. Segundo Marques (2003, p. 156), de maneira geral as redes de relações apresentam dinâmicas marcadas por uma forte dependência da trajetória percorrida. Assim, ela é composta, em um determinado momento, por uma superposição da rede herdada de períodos anteriores com novos indivíduos e vínculos, subtraídos dos vínculos e indivíduos que dela saíram. Se, no caso de Icapuí, ao longo dos anos de luta pela emancipação já se formava uma rede, neste momento essa rede é estruturada e consolidada, agregando a ela os diversos atores de Icapuí que buscavam a emancipação. A rede, portanto, se via agora composta de membros da oligarquia (grupo de jovens) e lideranças comunitárias, todos batalhando por um projeto comum.
Ainda segundo Marques (2003), as políticas públicas são definidas pela interação entre atores nos ambientes institucionais e relacionais presentes nas comunidades. As dinâmicas políticas são, portanto, resultado das interações entre os componentes da rede. Isso pode ser facilmente comprovado no caso de Icapuí. À medida que a rede foi estruturada e conseguiu criar laços fortes, as dinâmicas políticas foram acontecendo.
c) Administração Democrática Popular (1986-2004)
A equipe de governo formada, quando assumiu a prefeitura, tinha como base o grupo de jovens que se mobilizara pela emancipação e tentava compensar sua inexperiência com grande disposição e voluntarismo (ALMEIDA, 1993, p. 10). O momento político do Ceará havia concentrado a grande maioria de quadros progressistas e capacitados na administração de Fortaleza, capital do Estado. Todas mobilizações e atividades desenvolvidas na região durante o período anterior à emancipação, seja por parte dos pioneiros na ideia emancipatória, seja as ações da Igreja Católica e mais recentemente na composição do grupo de jovens ocupando os quadros administrativos da nova prefeitura, construíram redes sociais de cooperação sólidas que foram essenciais para dar suporte às ações dos primeiros anos de mandato.
Já na primeira administração, o município enfrentou diversas dificuldades buscando implementar uma gestão inovadora com novos modelos políticos e administrativos de enfrentamento aos problemas sociais e atendimento às demandas da população. Alto índice de mortalidade infantil, falta de leitos hospitalares, 70% de analfabetismo, elevado número de professores leigos e poucas escolas eram apenas alguns exemplos dos grandes desafios a serem enfrentados pelo município.
Para enfrentá-los, as principais ações iniciais foram: participação popular, transparência administrativa, democratização e universalização dos serviços públicos, principalmente de educação e saúde. Até 2004, Icapuí passou por quatro gestões municipais seguidas, todas conduzidas pelo grupo que liderara a emancipação. A reversão do quadro social, a universalização da educação e do acesso a direitos, transparência e participação tornaram-se marcas desse período de administrações.
 
Ações na Educação
Com base na realidade social de Icapuí, a nova administração municipal decidiu ter, como prioridade, a garantia da universalização do ensino. Para tanto, ainda em 1986, foi colocado como meta que no prazo de um ano fossem garantidas vagas nas escolas para todas as crianças do município. Primeiramente, foi feita uma ampla mobilização popular por meio de um processo de estímulo à participação e ao envolvimento da comunidade, aproveitando a mobilização social decorrente da emancipação para envolver a sociedade na administração do município.
Passando de casa em casa, foi-se criando um grupo de apoiadores, ao mesmo tempo em que se consolidava a ideia de que o poder estava sendo distribuído e compartilhado. O envolvimento da população na implementação da universalização do ensino, conseguindo professores locais e se conscientizando da necessidade de educação foi alto. Após garantir o envolvimento da população, foram recrutados como professores pessoas que tivessem, pelo menos, o ensino fundamental, considerado suficiente para alfabetizar as crianças dado o quadro de carência do município.
A estrutura das salas de aula também foi improvisada. A população cedeu espaços como Igrejas ou até mesmo um pé de cajueiro, sob o qual as crianças passaram a ser alfabetizadas. Os resultados do primeiro ano já foram satisfatórios, conseguindo-se aumentar de 17 para 59 o número de salas de aula e de 690 para 3.059 as vagas disponíveis. Para as crianças que viviam na área rural ou que não tinham escolas próximas, a educação foi garantida por meio do transporte escolar.
Paralelo a isso, os professores "improvisados" passaram a receber formação e capacitação com base na pedagogia de Paulo Freire (1987). Assim, a pedagogia adotava a alfabetização de jovens e adultos para poderem entrar e participar da sociedade e de sua transformação. Com base nisso, foram formados os Círculos de Cultura e Aprendizagem, com o objetivo de diminuir os índices de analfabetismo entre jovens e adultos.
Após o primeiro ano de mandato veio a necessidade de vagas no ensino médio. Assim, adotou-se como meta garantir o acesso ao ensino médio ainda no segundo ano de mandato. Houve dois processos de mutirão: um de alfabetização, incluindo as escolas e os Círculos de Cultura e Aprendizagem; e outro de formação de segundo grau e formação pedagógica para capacitar os professores. Ao longo do tempo, a educação foi-se tornando uma política pública reforçada, para a qual se destinavam mais de 50% dos recursos municipais (ICAPUÍ, 2002).
Investiu-se na capacitação dos professores e profissionais do ensino, primeiramente na formação de ensino médio dos professores, passando então para uma formação de magistério que, em 1989, se consolidou por meio da criação do 2ºgrau científico. Posteriormente foi elaborado um convênio com a Universidade Estadual do Ceará (UECE), garantindo cursos de pós-graduação para professores3.
Ao longo dos 25 anos dos projetos educacionais, houve diversas alterações no perfil do município. Consolidando-se os dados hoje, nota-se evolução no que tange a alguns aspectos da educação municipal. O município conta atualmente com uma rede de 20 escolas e 2 creches. Os dados do censo de 2002 apontam a existência de 4.793 alunos matriculados nas escolas (Gráfico 1).

 
 
Quanto à taxa de analfabetismo, os dados do IBGE apresentam taxa de 19% e no ano de 2002 a taxa de evasão escolar foi de 5,9%. No que se refere ao índice de conclusão de curso, neste mesmo ano, de 284 alunos matriculados na 8ª série, 87,32% conseguiram concluir o ensino fundamental.
Existem no município várias atividades ligadas à cultura e ao desporto, havendo 116 núcleos culturais com atividades semanais, um centro de memória da cultura popular, uma biblioteca pública, três bibliotecas escolares e três grupos de teatro de rua. Já com relação ao desporto, o município tem dois ginásios poliesportivos, cinco quadras esportivas e escolinhas de esporte4. O município continua fornecendo transporte público e gratuito para as crianças de comunidades onde não há escolas, o que estimula as crianças a continuarem estudando.
A capacitação dos professores é ainda um processo contínuo. Hoje existe no município o Programa de Estudo Dirigido para o Docente, que conta com uma série de atividades para a capacitação dos professores como forma de educação continuada.
 

Autores: Gabriela Lotta e Rafael Martins
Fonte: Fundação CESGRANRIO

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